Ao longo de 2020, um ano marcante que trouxe desafios para as cidades e para quem nelas vive devido à pandemia covid-19, o coletivo ZEBRA não esqueceu a sua missão e adaptou as ferramentas disponíveis para continuar a trazer todos à discussão sobre a importância de andar a pé. Em setembro, promovemos o ciclo de conversas vídeo, organizado pela associação Corações com Coroa com o Coletivo ZEBRA, no âmbito do Co-lab WALK MY CITY FREE. À distância, por videoconferência, demos voz a vários especialistas na área do urbanismo, sociologia e arquitectura, para percebermos como estão os hábitos de caminhar dos portugueses e como se desenha uma cidade para andar a pé. Um dos princípios mais destacados pelos diversos participantes como fundamentais para o futuro das cidades foi a importância de ouvir todos os que percorrem diariamente as suas ruas ou que, não o fazendo, gostariam de ter mais condições para tal.
Foi justamente com base neste pressuposto que a ZEBRA lançou, no dia 4 de outubro de 2020, o inquérito “Caminho como respiro”, para ouvir as pessoas sobre os seus hábitos, desejos e preocupações quanto à ação de caminhar pela cidade – por prazer ou por obrigação. Até 14 de janeiro de 2021, já havia 508 participantes, incluindo 389 mulheres, 101 homens, 11 mulheres transexuais e três homens transexuais – a amostra sobre a qual trabalhamos. As respostas enviadas permitiram tirar várias conclusões, principalmente no que diz respeito às discrepâncias encontradas entre os diferentes géneros.
Começamos com os hábitos de caminhada. O nosso inquérito permitiu verificar que apenas uma minoria (6%) não possui este hábito, contra 56,9% que afirmam caminhar todos os dias. Dados que contrastam com as conclusões de um inquérito realizado pelo Programa Nacional de Promoção da Atividade Física (PNPAF), programa prioritário da Direção-Geral da Saúde, que conclui que não só 47% dos portugueses residentes nas cidades são sedentários e 48% não pratica qualquer tipo de desporto, como 13% da população da cidade portuguesa nem sequer anda dez minutos seguidos. As divergências com os nossos dados podem ser explicadas pelo fato de a nossa amostra estar concentrada em pessoas que vivem no centro de uma grande cidade ou imediatamente na sua periferia, enquanto a pesquisa do PNPAF também incluiu pessoas de áreas mais rurais do país.
A pesquisa da ZEBRA indica que a maioria escolhe (36,4%) ou tem de (39,9%) andar a pé para cumprir as suas obrigações diárias ou por lazer. Na verdade, 96,6% afirmam que o fazem mesmo por lazer. No entanto, grande parte (79,2%) respondeu que o faz no caminho para a escola, faculdade ou trabalho, ou mesmo para levar os filhos à escola ou fazer compras (81,8%). 40,6% caminham todas as semanas (entre cinco a sete dias) de dez a 30 minutos. Por outro lado, o número de pessoas que caminham mais de uma hora vários dias por semana é residual e grande parte não caminha mais de 30 minutos durante a semana.
Contudo, quando olhamos para as questões por idade e sexo, o quadro estatístico difere do geral. Em relação à idade, há uma conclusão a tirar: os mais novos (nascidos entre 1997 e 2002) são aqueles que responderam caminhar com frequência, diariamente. Quanto ao género, é possível concluir que a maioria das pessoas que se identificaram como mulheres afirmou que caminha todos os dias (59,6%). Outros 25,6% afirmam que caminham quase todos os dias. Dessa amostra de mulheres, 33,9% afirmam que precisam de caminhar até o trabalho, escola ou universidade, enquanto 45,8% escolhe apenas fazê-lo (pelo menos dez minutos deste percurso) e 49,5% optam por caminhar por prazer. Dentro de cada grupo de género, as mulheres transexuais foram as que mais responderam caminhar todos os dias (90,9%).
Na hora de dizer qual a altura do dia em que mais gostam de caminhar por lazer, as preferidas são, para a amostra em geral e por ordem, ao final da tarde, durante o dia ou ao amanhecer. ‘Durante o almoço’ é a variável com menor número de respostas, um sinal do desuso da caminhada como processo colaborativo, entre os colegas de trabalho, como acontece em várias empresas no mundo. ‘À noite’ é a segunda opção menos escolhida, o que pode ser explicado por preocupações com a segurança nas ruas, como exploraremos mais adiante neste documento.
Também por género existem discrepâncias neste tema. Nenhum dos tipos de transgéneros escolheu que o horário em que mais gostam de caminhar seja à noite. Entre as mulheres, apenas 17,4% selecionaram essa variável, o que contrasta com os 34,7% dos homens que afirmam gostar mais de caminhar à noite. Os dados refletem as advertências que vários especialistas em urbanismo e sociologia têm feito ao longo dos anos: as cidades não estão pensadas para as mulheres, vulneráveis a certos comportamentos e condições físicas.
Assim como a ZEBRA concluiu com este levantamento, o PNPAF também mostra que a existência de determinados espaços na cidade influencia os hábitos de caminhada. O PNPAF conclui que 73% dos residentes em Lisboa reconhecem ter um parque ou caminho para caminhar perto de casa, com 57% no Porto e 40% em Coimbra respondendo ao mesmo. A amostra coletada pela ZEBRA mostra que quase 90% caminham perto de onde moram e a maioria das pessoas gosta e tenta caminhar em áreas verdes ou azuis. Para todos os géneros, andar em ruas com boa cobertura também é um fator importante na hora de decidir sair de casa, do trabalho ou da escola e caminhar.
O certo é que os hábitos da maioria das pessoas mudaram desde que a pandemia covid-19 chegou a Portugal e, sobretudo, durante o lockdown. Desde março de 2020, quando o Governo português decidiu o recolher obrigatório de toda a população, tanto houve quem deixasse de andar lá fora como quem passasse a fazê-lo. De acordo com os dados da nossa amostra, 59,5% afirmam que passaram a dedicar-se mais à caminhada e 33,9% admitem que, desde então, também passaram a dedicar mais tempo à caminhada até a escola ou trabalho.
Então, o que limita ou motiva os cidadãos a caminhar mais ou menos pela sua cidade? Neste campo, as conclusões do inquérito ZEBRA aproximam-se do que já tinha sido afirmado pelo estudo do PNPAF: a falta de motivação é o pretexto para 46% dos que não praticam qualquer forma de atividade física e há ainda 45% que alega que o problema é falta de tempo. O nosso inquérito permitiu sobretudo perceber que há um fator limitador para uma grande parte da amostra feminina e transgénero: a forma como a cidade está desenhada para caminhar ou não.
As conclusões mostram-nos que a maioria dos participantes não sente qualquer limitação ao caminhar por prazer. No entanto, 31,3% diz realmente não ter tempo e 14,4% fala em insegurança. Embora as diferenças sejam notórias quando se faz esta análise por géneros. Enquanto 38,9% das mulheres responderam que não o fazem mais por não terem tempo suficiente, apenas 5% dos homens referiu o tempo como razão. A segurança é o fator mais contrastante, com 0% dos homens a escolher esta razão, contra os 17,9% das mulheres e 81,8% das mulheres transgénero – não houve homens transgénero a referi-lo. Relativamente aos transgéneros, ambos os tipos referiram ainda não caminhar mais pelo desconforto do olhar dos outros: 81,8% das mulheres transgénero e 33,3% dos homens transgénero.
Quando pedimos aos participantes do inquérito para apontarem quais os limitadores existentes nos seus bairros, apontaram, sem grande discrepância entre estatísticas, o seguinte: assédio sexual, tráfego automóvel, assaltos e ruas frias ou sujas.
O que, aliás, vai ao encontro de um conjunto adicional de testemunhos que recolhemos junto de estudantes universitários de Lisboa. Apresentamos nove depoimentos, que converge na constatação de falta de liberdade para caminhar com satisfação e segurança nas ruas, especialmente à noite e em zonas sem outras pessoas no terreno. Entre eles, há diversos manifestos a ter em conta, entre os quais a ideia de que a presença policial não é, necessariamente, fator de confiança. E há até quem prefira que o percurso não tenha iluminação, de modo a passar sem dar nas vistas. Alguns dos sete estuantes defendem que o planeamento urbano desenhe percursos abertos “sem armadilhas” para quem se move a pé, e que a colocação sistemática de câmaras de vigilância (como foi anunciado pela Câmara Municipal de Lisboa) pode ser dissuasora. Há ainda desejos de comércio aberto durante a noite para que o povoamento possa gerar confiança. Mas, principalmente, sobre a ideia de que este trabalho de incrementar a segurança na rua começa antes da hora de desenhar cidades: defendem a necessidade de a educação dar atenção especial ao respeito pelo outro, de modo a mudança de mentalidades, pois é constatado que o sentido de proteção funciona entre algumas comunidades minoritárias, mas está ausente na sociedade em geral.
Suíla, 25 anos
“Gostava que quem tem o encargo de garantir a segurança dos cidadãos experimentasse percorrer o trajeto que todas as noites tenho de cumprir entre a estação de Metro do Colégio Militar e o quarto onde vivo.”
Carolina, 18 anos
“São raras as viagens em que não levo comentários de objetificação ao meu corpo ou em que os próprios olhos dessas pessoas não se encarregam de o fazer.”
Iza, 20 anos
“Sinto-me relativamente segura andando pelas ruas de Lisboa em relação ao que sentia nas ruas do Brasil. Acredito que tenho sim mais liberdade em Lisboa, principalmente á noite, dado ao facto que no Brasil nunca tive dada liberdade.”
Luna, 23 anos
“É horrível sentirmo-nos comidas com os olhos de pessoas inapropriadas.”
Rodrigo, 21 anos
“As únicas alturas em que me sinto 100% seguro na cidade é no decorrer do dia.”
Petra, 22 anos
“Ver nas ruas n polícias transmite-nos uma certa segurança ao andarmos pelas ruas de Lisboa, seja de noite ou de dia”
Deana, 23 anos
“Lisboa, tal como Portugal aparecem-nos, orgulhosamente como lugares seguros. No entanto, apesar de ser relativamente seguro em comparação com outros países da Europa, casos de assédio persistem nas ruas.”
Micaela, 23 anos
“Não sou por uma vida policiada, mas é precisa transformação das mentalidades orientada para o respeito pelas pessoas.
Lara, 23 anos
“A polícia na rua, por si só, não é um factor de tranquilidade, pode ser o contrário. O que era bom é que houvesse caminhos francos para quem vai a pé. Sou completamente a favor de haver câmaras de vigilância.”
Ver todos os testemunhos de estudantes sobre “O que é ser mulher/homem e andar na cidade”
Quer no nosso inquérito quer na voz destes testemunhos, fica algo claro: homens e mulheres não perspetivam a cidade da mesma forma e reconhecem que a segurança é um tema que afeta mais as mulheres. Conclusão que já tinha ficado demonstrada no estudo da investigadora brasileira Adriana Souza. Em 2019, desenvolveu a a tese “MULHER, UMA FORÇA QUE CAMINHA UM ESTUDO DE CASO EM BRASÍLIA E LISBOA”, no âmbito da tese de doutorado da pós-graduação em Transportes do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília.
Ao longo de anos, a investigadora Souza apurou um índice de caminhabilidade do medo das mulheres nas cidades escolhidas para o estudo de caso. Assim, calculou o índice de caminhabilidade do medo das mulheres (parte quantitativa) com base em dois questionários online respondidos por 1189 mulheres no Brasil e em Portugal – tendo sido utilizadas 516 respostas (233 em Brasília e 283 em Lisboa).
Foram várias as conclusões a que chegou. Em primeiro lugar, conta, “foi confirmada a hipótese apresentada de que a construção de cidades que apresentam soluções tradicionais de mobilidade e planeamento urbano é extremamente opressora à mulher nos seus deslocamentos, pois as mulheres são cerceadas na escolha de seu trajeto a pé e são limitadas de ocuparem os espaços públicos, apenas por ter de cumprir um papel social e cultural atribuído a elas na sociedade, e por isso são incentivadas e reforçadas a desenvolverem sensações de vulnerabilidade e insegurança, guardadas as especificidades dos dois países e das suas capitais.”
Uma realidade que tem um foco muito definido na capital portuguesa. Através das entrevistadas por Adriana Souza em Lisboa, a investigadora somou referências ao “receio/medo de circularem a pé no período notturno”. “Também relataram os desconfortos sofridos pela infraestrutura ineficiente dos passeios, da iluminação e da falta de políticas públicas para os estacionamentos irregulares de veículos nos passeios. A cultura, também machista e sexista dos portugueses, influencia na elaboração de estratégias de deslocamento que elas adotam no dia a dia, por exemplo, as mulheres planeam seus deslocamentos evitando certos modos de transportes, rotas e horários”, remata.
A amostra de Lisboa permitiu ainda aferir que “a imensa maioria das mulheres declara que se sente demasiado cansada, sempre ou quase sempre, o que é lógico se considerarmos o pouco tempo de que muitas mulheres dispõem para si próprias nos dias úteis/de segunda a sexta-feira. Uma em cada dez mulheres declara tomar diariamente medicamentos para a ansiedade, para os distúrbios do sono ou antidepressivos”.
Apesar do constatado relativamente à segurança, Adriana Souza ressalva que Lisboa fez “grandes progressos nos últimos anos para melhorar a segurança dos pedestres em todo o município”. Destaca, por exemplo, o Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa (2013) como uma grande inovação legal em planeamento de pedestres e engenharia de tráfego (Balsas, 2017). Foi criado com o objetivo de “tornar Lisboa acessível, impedindo a criação de novas barreiras, promovendo a adaptação das edificações existentes e mobilizando a comunidade para a criação de uma cidade para todas as pessoas” (CML, 2009). A pedestrialização iniciou em 1984 na capital, quando a sua principal rua – Rua Augusta –, que liga a Praça do Comércio à Praça do Rossio, foi pedestrianizada.” No seguimento da construção deste plano, nasceu o Mapa Potencial Pedonal (MAPPe), cujo objetivo passava por “modelar o potencial pedonal de Lisboa, visando contribuir para o planeamento e gestão do espaço público, e percebendo quais são as áreas do município de Lisboa onde existe uma maior concentração de fluxos pedonais, possibilitando a definição de prioridades na atuação da melhoria do espaço público” (Relatório de Execução em 2015 – 2017).
Ainda assim, Adriana Souza conclui que, no processo de construção das cidades, prevalece o contributo masculino e é menosprezado ou mesmo ignorado o proposto por mulheres.
Patrícia Santos Pedrosa, arquitecta, professora universitária e fundadora da associação Mulheres na Arquitectura dedicada a promover a igualdade de género, ajuda-nos a identificar ainda outras barreiras à caminhabilidade das mulheres nas cidades:
As cidades estão pouco preparadas para as mulheres: “a cidade é desenhada por e para homens”. A desigualdade sai pela porta fora da casa das mulheres. Uma experiência ocidental, não só em Portugal – aliás, “basta alguém ter de andar pela cidade com um carrinho de compras ou de muletas para ter logo este choque com a realidade”. São os homens que estão nos cargos de decisão, o que torna a voz feminina no processo do desenho urbanístico quase nula.
Isto reflete-se na insegurança que as mulheres sentem quando andam na cidade – há uma série de sítios onde os pavimentos já estão a mudar, a ficar mais seguros; mas até nisto a experiência de uma cidade é desigual. Nos transportes, também. “Está provado, em estudos internacionais, que são as mulheres quem mais frequenta os transportes públicos”. A cidade foi construída sobre uma base rodoviária, mas grande parte das mulheres não anda de carro, anda de transportes. E pessoas que usam transportes públicos andam mais a pé do que aquelas que se transportam de carro. Mas nem os transportes apresentam condições: “não estão feitos para as muitas mulheres que, por exemplo, entram ao trabalho nas empresas quando todos vão para casa, para limpar os escritórios e sair já de madrugada. Já nos perguntamos como é que estas mulheres regressam a casa? Se têm transportes e quantos têm de apanhar para lá chegar. Muitas delas, a morar no grande anel periférico da cidade”.
“Não sei se há muitas pessoas com esta consciência, mas há mulheres que abdicam de cuidar de si pelo incómodo de se dirigirem a determinados espaços da cidade” – ou por estão longe, ou porque os acessos estão dificultados.
Nem tudo é negativo nas estatísticas. O nosso levantamento permitiu-nos perceber como é que caminhar faz os nossos participantes sentirem-se quando o fazem e todos mostram que há boas razões para o praticar.
A maioria diz que caminhar o relaxa (86,3%), sobretudo. Mas também os faz sentirem-se livres (71,4%), agradecidos por fazer exercício (64,2%), ganhar energia (61,6%), sentirem-se inspirados (49,6%) e empoderados (27,6%). No entanto, apenas uma ínfima parte (10,7%) disse que os faz sentirem-se contentes com a oportunidade de conhecer outras pessoas. O que leva a crer que o caminho ainda é, para a maioria, uma ação solitária – por isso é que 6,7% respondeu que caminhar os faz sentir solitários.
Tal como nas restantes variáveis, passer da análise geral da amostra para a análise por faixas etárias ou por géneros muda o panorama dos números. Quando dividimos por géneros: ‘relaxado’ é o mais respondido entre todos, mas há diferenças a partir do segundo parâmetro mais respondido. Nas mulheres, é ‘free’ (77,7%), já nos homens é ‘glad to be working out’ (71,3%), sendo que ‘free’ é só a quarta opção mais respondida, com 52,5%. Além disso, enquanto apenas 13,9% dos homens refere sentir-se ‘empoderado’, os outros géneros dão bastante relevo a este parâmetro: mulheres – 32,2%; mulheres transgénero – 54,5%; homens transgénero – 33,3%; outros – 25%.
Os números revelam que os benefícios de andar a pé vão além dos físicos, podendo ser um canal de empoderamento das pessoas que mais se sentem oprimidas, ou pelo tempo ou pelos outros.
Project Co-Lab Walk my city free is a EEA Grants co-financed project initiated in 2020.
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